Tudo ia bem perante a especializada Justiça do Trabalho. Com base em preceito constitucional, ela sempre examinou, instruiu e julgou as pretensões de vínculo de emprego.
Antes e após a Emenda Constitucional n. 45. Dito de outro jeito: à Justiça trabalhista sempre coube julgar causas trabalhistas. Simples assim.
Destarte, diante do caso concreto, o magistrado aprecia a presença (ou não) dos requisitos legais da relação de emprego: trabalho não-eventual exercido de modo personalíssimo, mediante salário e sob dependência jurídica (subordinação). Amiúde, reclamatórias postulando o vínculo sempre existiram no Brasil e na maioria dos países ocidentais (e alguns orientais).
Com o passar do tempo, após tantas condenações por descumprimento da CLT, boa parte das empresas passou a dissimular a relação de emprego sob os mais variados rótulos: prestador autônomo; representante comercial; trabalhador eventual; sócio; cooperado; estagiário; franqueado; dentre outros.
Nesse contexto, surgiu até mesmo uma nova alcunha para designar os casos de fraude, em que o tomador de serviço impõe ao seu empregado subordinado a abertura de uma PJ (pessoa jurídica) a fim de formalizar um contrato de trabalho autônomo. Essa “pejotização” é uma manobra dissimuladora muito conhecida nas lentes dos operadores jurídicos.
Pois bem. Com a Reforma Trabalhista de 2017, veio, a reboque, novo diploma legal para regular a Terceirização da mão de obra: a Lei 13.429.
Nela ficou claro que a terceirização poderá ser feita tanto para atividade secundária quanto principal.
Vale dizer: contrariando o verbete que até então prevalecia neste tema (Súmula 331 do TST), doravante qualquer empresa passou a ter maior liberdade para optar em contratar seus empregados diretamente, ou firmar uma parceria com uma empresa de serviços terceirizados.
A fim de alinhar a sua jurisprudência com este novo regramento, o STF, em 2018, editou duas decisões com repercussão geral: Tema 725 e ADPF 324. Nestas ocasiões, ficou claro que a terceirização é sempre triangular (envolvendo empresa idônea especializada em sublocação de trabalho), e que pode ser feita tanto para atividade meio quanto para aquela essencial da empresa.
Ao irmos atrás dos debates relativos aos primeiros julgamentos deste tema, encontraremos vários trechos em que os Ministros fazem acertada baliza para distinguir os casos de terceirização autêntica daquela fraudulenta.
A propósito, torna-se oportuno transcrever uma parte do julgado da ADC 48, alusiva ao Motorista autônomo, quando o Plenário, na sessão do dia 14/4/2020, fixou a seguinte tese: “Uma vez preenchidos os requisitos dispostos na Lei nº 11.442/2007, estará configurada a relação comercial de natureza civil e afastada a configuração de vínculo trabalhista”.
Nesse momento, o Ministro Fachin, de modo acertado, fez questão de divergir do então relator, Ministro Barroso, para esclarecer que “presentes os elementos próprios de uma relação de emprego”, esta deve ser considerada, incidindo sobre tal todas as consequências do regime laboral”.
Por outro lado, o Ministro Barroso, ao rebater tal divergência, acabou por bem esclarecer a matéria, assim:
“Presidente, apenas gostaria de fazer um breve comentário. O Min. Fachin e eu não temos uma divergência de substância, porque a Lei trata do transportador autônomo de carga, que é o proprietário (ou arrendatário) do caminhão, (situação) diferente do transportador de carga empregado, que dirige o caminhão do dono da carga. Neste caso, se estiverem presentes os elementos do vínculo trabalhista, não incide a Lei (11.442)”.
Como se vê, perfeito o esclarecimento. Ocorre que de uns anos para cá, os Ministros da Casa, com exceção de Fachin e Dino, passaram a alargar o seu próprio entendimento.
E assim, de modo manifestamente equivocado e ao arrepio da ordem legal, inseriram no guarda-chuva dos verbetes vinculantes (ADPF 324 e Tema 725) toda e qualquer relação de trabalho que simplesmente mencione a palavra “autônomo”. Sim, exatamente isso.
Nas lentes do STF basta ao empregador impor ao empregado a assinatura de um contrato supostamente “autônomo”, que já será suficiente para afastar qualquer pedido de vínculo de emprego.
Por mais que se prove na audiência de instrução que os aludidos requisitos estão presentes isso é insuficiente.
Para eles, não se aplica o velho e bom princípio da primazia da realidade sobre os fatos, tampouco a regra do artigo nono da CLT. Pior: por meio de Reclamações Constitucionais todas as empresas condenadas correm para o colo do STF já sabendo que lá obterão êxito.
Mas aqui cabe uma indagação: tais Reclamações podem revolver análise de fatos e provas?
Ora sabemos que não. Então como o STF faz para conhecer e julgar as aludidas Reclamações constitucionais?
Simplesmente passando por cima desse pressuposto processual, além de ignorar os fundamentos probatórios da decisão trabalhista.
O resultado é quase sempre o mesmo: o gabinete do ministro puxa aquela macro pronta e decide: casse-se a decisão trabalhista de fundo e afaste-se o vínculo empregatício. Simples assim.
Por certo, referida postura assanhou demasiadamente as empresas sucumbentes, ensejando um crescimento vertiginoso desta última medida redentora.
Cresceu tanto que os próprios ministros estão assustados com o monstro que eles criaram.
Termino este ensaio com a célebre frase de sir Robert Walpole, considerado o Primeiro-Ministro da Grã-Bretanha.
Quando pressionado a mudar o seu estilo de governar, o estadista inglês sempre dizia esta frase: quieta non movere! Em tradução livre significa: “Não se deve tocar no que está quieto”.
Lamenta-se que o STF não tenha feito o mesmo. Ao mudarem seu posicionamento jurisprudencial, sem qualquer modulação, os Ministros da Alta Corte não só deformaram a ordem jurídica como mexeram no que (social e tecnicamente) estava indo bem.
ARTIGO: Dr José Affonso Dallegrave Neto. Advogado; pós-doutor em Direito.